Projeto de lei retira garantias e transfere a donos de terrenos os critérios sobre o que deve ou não ser suprimido entre as árvores da cidade
A cidade de São Paulo está prestes a mudar radicalmente sua política de desarborização urbana, facilitando o corte e o desmatamento, além de transferir decisão do que deve ser cortado ou não para os donos dos terrenos e reduzir drasticamente o espaço dos fragmentos que ainda restam de mata e dos corredores vegetais a serem preservados. O instrumento para isso é o Projeto de Lei n. 391/2021, de iniciativa do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que altera a Lei Municipal n. 10.365/87, trazendo novas regras para o manejo da vegetação de porte arbóreo no município de São Paulo.
O PL já foi aprovado pela Câmara Municipal e aguarda sanção do Prefeito, embora a maioria de representantes da sociedade civil presentes às duas audiências públicas virtuais convocadas para discutir o tema tenha se manifestado contrária a ele. O movimento Defenda São Paulo (https://defendasaopaulo.org.br/) enviou uma representação ao Ministério Público apontando diversas impropriedades nesse PL que, se implantado, vai resultar em prejuízo ambiental irreversível para a cidade e indicando que a tramitação do PL não estava observando o princípio da ampla publicidade, conforme preconizado no art. 41, inciso VIII da Lei Orgânica do Município de São Paulo.
O próprio Ministério Público de São Paulo está movendo ação civil pública contra a Prefeitura e a Câmara Municipal pela proposta e aprovação de tal Projeto de Lei, que segundo o órgão promotor de Justiça, configura enorme “retrocesso ambiental” no município de São Paulo.
A Lei Municipal n. 10.365/1987 já havia sido modificada no ano de 2020 pela Lei Municipal n. 17.267/2020, cuja insegurança jurídica, incongruência e inconsistência com as diretrizes nacionais de proteção ambiental vigentes foram denunciadas em Carta Aberta pelo Fórum Verde Permanente e que o CAEx (Centro de Apoio Operacional à Execução), órgão técnico do Ministério Público, considerou, no parecer do dia 6 de março de 2020, um retrocesso na proteção da vegetação arbórea da Capital.
Diante da representação recente do Defenda São Paulo, o Promotor de Justiça Jairo Edward de Luca solicitou um parecer ao CAEx, que produziu um relatório que, de forma consistente, apontou diversas falhas, negligências, descuidos e precipitações no texto do projeto de lei, já a partir da sua fundamentação. O CAEx destaca que a única justificativa apresentada pelo executivo foi a de que a lei atual remonta à década de 1980, necessitando de atualização.
Além disso, um dos objetivos do PL seria “dar celeridade aos requerimentos de manejo de vegetação de porte arbóreo, simplificando os procedimentos para a supressão, o transplante e a poda, o que desestimularia que os espécimes arbóreos fossem manejados de forma irregular, sem o consentimento do Poder Público”. O parecer do CAEx contra-argumenta que “não é o texto da nova lei que tornará maior o consentimento do Poder Público, mas sua atuação mais presente na causa protetiva do meio ambiente, por meio do seu poder de polícia”. Ou seja, trata-se de fiscalizar efetivamente, e não de promover remendos na legislação que tapem essa falha.
A análise do CAEx evidencia que o referido PL se mostra radicalmente menos protetor em relação ao meio ambiente do que o texto da Lei Municipal n. 10.365/1987. No Capítulo II, intitulado Da Vegetação Significativa, abole-se “de forma injustificada e sumária o dispositivo protetivo mais valioso da Lei Municipal n. 10.365/1987”, o artigo 4º, parágrafo 2º, alínea “a” (incisos 1 ao 4).
Esse dispositivo que o prefeito quer ver extinto foi o que criou a categoria de Vegetação de Preservação Permanente (VPP), constituída por bosque ou floresta heterogênea que: (1) forme mancha contínua de vegetação superior a dez mil metros quadrados; (2) se localize em parques, praças e outros logradouros públicos; (3) se localize em regiões carentes de áreas verdes; (4) se localize em encostas ou partes destas, com declividade superior a 40%. Anula-se assim, sumariamente, uma proteção histórica para a vegetação de porte arbóreo da Capital sem que haja substituição por qualquer outro dispositivo semelhante.
Desastre na confusão terminológica
O parecer destaca ainda o erro do PL em considerar a supressão imediata e incondicional da vegetação considerada “invasora” na cidade, um conceito extremamente complexo, que o PL simplifica, pois se refere a espécies exóticas que de alguma forma afetam negativamente espécies nativas. Importante lembrar que a maior parte da vegetação de paisagismo hoje em São Paulo é “exótica”, sendo disseminada por inúmeras avenidas, parques, ruas e residências (a vegetação “nativa” é hoje apenas 27,4% do município, segundo o relatório do CAEx). A possibilidade de que as “exóticas” possam, apenas por sê-lo, serem menos protegidas, ou suprimidas, quando confundidas com “invasoras”, pode gerar desastres ambientais na cidade. Sem contar que o próprio conceito de “exótica” é polêmico, podendo ser um critério geográfico (de outro país) ou biológico (de outro bioma dentro do próprio país).
O relatório do CAEx lembra que “esse valioso dispositivo (o artigo 4º da lei de 1987, que está sendo suprimido no PL atual) não diferenciava as espécies em relação à origem, aplicando-se indistintamente tanto para as árvores nativas quanto para as exóticas”, atribuindo maior ênfase ao recobrimento do solo do que à origem das árvores, o que se justifica plenamente pelo fato de que, na Capital, os exemplares arbóreos cumprem, indistintamente, funções ambientais essenciais, “sobretudo para o amortecimento das cheias pela redução significativa das águas pluviais que atingem diretamente a superfície” e para a proteção do solo contra a erosão. Há consenso entre especialistas sobre o fato de o desmatamento e a impermeabilização estarem entre as principais causas do agravamento das inundações na Capital e sobre a importância da cobertura arbórea para atenuá-las. Segundo o parecer, isso “poderá resultar em fortes enxurradas, deslizamentos e escorregamentos, agravando os riscos à segurança e à integridade física dos ocupantes dessas áreas ambientalmente frágeis”.
Desproteção generalizada
Outra alteração considerada injustificável é a que retira a proteção expressa da vegetação arbórea em regiões carentes de áreas verdes, “eliminando o principal mecanismo legal no combate à ‘desigualdade verde’, que enquadrava como Vegetação de Preservação Permanente o bosque ou floresta heterogênea localizado em regiões que possuíssem um índice de áreas verdes inferior a 15% da área ocupada por uma circunferência de raio de dois mil metros em torno do local de interesse, conforme definição do § 4º, do art. 4º da Lei 10.365/87”.
Nota-se uma redução da proteção também quanto à supressão da vegetação arbórea nos projetos de loteamento e desmembramentos de terras, assim como em relação aos projetos de edificação em áreas revestidas, total ou parcialmente, por vegetação de porte arbóreo. Essas questões eram tratadas de forma cuidadosa e detalhada nos artigos 6º e 7º da Lei 10.365/87, enquanto, no novo PL, o tratamento é lacônico e muito mais permissivo, resumindo-se aos incisos I e II do artigo 14.
Nesse artigo 14 e nos subsequentes (15,16 e 17) incluídos na Seção III do PL, que trata “Da Supressão e do Transplante”, não há qualquer proibição à remoção da vegetação arbórea sob proteção especial, como árvores imunes de corte e ameaçadas de extinção, por exemplo. Não há também impedimento ao corte dentro de áreas especialmente protegidas, como unidades de conservação; áreas de preservação permanente (APP); áreas naturais tombadas; área de restrição à ocupação em mananciais (ARO), Mata Atlântica, entre outras.
A flexibilização do corte arbóreo nas áreas particulares, enfocada nos artigos 20 e 21 do PL 391/2021, torna possível que o corte de árvores seja realizado pelos munícipes, ou por empresas ou profissionais por eles contratados, independentemente de prévia autorização do poder público. Isso pode levar à realização de podas excessivas ou mal feitas, acarretando riscos de quedas acidentais das árvores.
Estes são apenas alguns exemplos extraídos do detalhado parecer técnico do CAEx, que termina concluindo que “o Projeto de Lei Municipal 391/2021 configura um imenso retrocesso ambiental, trazendo significativos riscos para a vegetação arbórea da Capital decorrentes da flexibilização das regras para a poda e o corte de árvores”. Esse PL está, assim, “em completo antagonismo com a importância fundamental da vegetação arbórea para o amortecimento das recorrentes cheias da Capital”, além de ferir os princípios constitucionais da Proibição do Retrocesso e da Participação Popular, “uma vez que o projeto é menos restritivo que normas anteriores e não passou pelo crivo da sociedade”.
Carta branca para derrubada de árvores grandes
O PL assinado pelo Prefeito também comete o que o Ministério Público classifica em seu pedido de ação pública como uma “indefinição preocupante” com relação a árvores de grande porte, justamente as que mais prestam serviços ecossistêmicos à cidade, permitindo sua derrubada quando o espécime for “incompatível com o local onde foi implantado”. Tal critério, lembra o MP, é de extrema subjetividade e, “ante a ausência de qualquer definição mais específica e técnica sobre o termo, poderá ser usado indevidamente como uma ‘carta branca’ para autorizar o corte arbóreo”.
Definição será em janeiro
Na Ação Civil Pública proposta pela Promotoria do Meio Ambiente, que levou ao judiciário o problema da falta de participação social em sua tramitação e na aprovação na Câmara Municipal, foi pedida uma liminar para suspender a sanção do prefeito ao PL, que já havia sido aprovado em duas votações. O juiz concedeu a liminar e suspendeu a sanção. A Procuradora Geral do Estado, Dra. Marina Magro, pediu a realização de uma Audiência de Tentativa de Conciliação, que ocorreu no dia 15 de dezembro.
Participaram dessa audiência o promotor, dr. Jairo de Luca, acompanhado dos dois assistentes técnicos do CAEx que redigiram o parecer citado acima. Defendendo o PL estavam um Procurador do Município, o Chefe de Gabinete da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, Rodrigo Ravena, a ex-diretora da Divisão de Arborização Urbana (DAU) e outras duas funcionárias da Prefeitura. A convite do Ministério Público, participaram da audiência Renata Esteves, pelo Defenda São Paulo, Gleice Vasconcelos, do Fórum Verde Permanente e do CADES de Santo Amaro e João Moreirão, do CMPU.
Ao final da audiência, o juiz decidiu dar um prazo até 10 de janeiro de 2022 para a prefeitura se manifestar sobre o parecer do CAEx. Já o Ministério Público teria prazo até 31 de janeiro para avaliar a manifestação da prefeitura. Se o Ministério Público achar que há consistência na manifestação da prefeitura, irá submeter o texto do PL a audiências públicas, que deverão ocorrer no próprio Ministério Público. Depois de passar por essas audiências, o PL voltaria para a Câmara Municipal, onde seria novamente submetido a audiências públicas. Por outro lado, caso o juiz avalie que não há consistência na manifestação da prefeitura, dará a sentença (da qual a prefeitura poderá, naturalmente, recorrer). Até o dia 31 de janeiro, a liminar fica em vigor, e o prefeito não pode sancionar o PL.
O Fórum Verde Permanente de Parques, Praças e Áreas Verdes, coletivo que reúne conselheiros dos parques municipais, dos Conselhos Regionais de Meio Ambiente (Cades) e membros dos movimentos em defesa dos parques e praças da cidade, posicionou-se contrário ao PL da desarborização em sua última reunião no ano de 2021, e começou a pensar uma estratégia para agir junto à Câmara Municipal e à Prefeitura no sentido de evitar que o PL seja sancionado, evitando assim os graves riscos que ele traz. O coletivo vai acompanhar a agenda desse caso, até o final de janeiro, convidando os movimentos ecológicos da cidade para participar deste debate.
É um absurdo a Prefeitura, em vez de fiscalizar e regular o serviço de podas, pretende simplesmente abdicar da responsabilidade. Deixar para os donos de terrenos decidirem todos sabem o que vai dar. A prefeitura, que é quem deveria zelar por isso, está lavando as mãos e apostando no liberou geral. A Amazônia queimando é aqui.